sábado, 25 de setembro de 2010

Sobre muletas

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Era uma vez uma muleta, um tanto enigmática, mas bem representativa de outras tantas que há por aí. Trabalhava bem como todas as outras, porém com mais ênfase, mais empenho, uma vez que o Criador dera-lhe um dom especial (e ela podia sentir isso): era uma muleta que gostava de ser muleta. Por muitos e muitos anos trabalhou sem maiores questionamentos, tranquila e até mesmo feliz (por ser uma muleta). Até que em um dia cinza, dera-se por insatisfeita pelo término de mais um ‘trabalho’ (‘trabalho’ este que exigiu paciência e tratos específicos, uma vez que era um ‘trabalho’ diferenciado, daqueles que não revelam-se facilmente, desses poucos que há por aí), pois já estava cansada de tantas trocas de trabalho e perguntara a si própria: "Por que os 'trabalhos' não conservam uma única muleta? Não seria mais fácil recorrer àquelas que já o conhecem?" ... Foi então que sua ‘amiga muleta imaginária’ segredou-lhe bem baixinho: "E quem lhe disse que todas as muletas conhecem os 'trabalhos' a que se prestam? Não é para conhecer, individualizar, considerar ou torná-los especiais ... 'trabalhos' são 'trabalhos', mais nada além disso, e você, cara amiga muleta enigmática, só é mais uma muleta das quais eles se utilizam sem maiores considerações e diferenciações.”

A muleta, por sua vez, ensimesmada em seu próprio ‘eu muleta’  refletiu, questionou-se, estudou ... Sem êxito, decidiu ir até ao Criador.

Lá chegando, já esgotada de tanto procurar uma lógica sobre a existência das muletas, perguntou: “Por quê?”, o Criador, espantado, olhou-a com curiosidade e disse: “Por que questionas algo que és tão lógico? ‘Trabalhos’, são ‘trabalhos’, muletas, são apenas meras muletas ...”. Ela, muleta, em sua forma peculiar e tão pequena diante Dele, suplicou-lhe que a ajudasse a entender. O Criador, por sua vez, perguntou-lhe: “Não vês tua forma? Nunca olhaste-te refletida em um espelho?”. Percebendo um misto de desespero e surpresa na face daquele ser, pegou-lhe pela mão, suavemente, e guiou-a até um espelho: “Não vês que és um ‘trabalho’ e não uma muleta? Olha-te, reconheça-te ... És tu que necessitas de uma muleta ... não para tê-la como apoio, mas para valorizar tudo aquilo que ela te darás e possibilitará quando do confronto com o espelho maior, aquele que lhe dá o livre arbítrio, que é a tua consciência ...  Agora vá, e sem pormenores, faça o que tem de ser feito.”.

De olhos baixos e expressões duras, a muleta que na verdade era um ‘trabalho’, seguiu sem olhar para trás, decidida a encontrar a sua própria muleta.

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