terça-feira, 26 de julho de 2011

Village Café - 25 de julho: dia do escritor

aeioudideias.blogspot.com
Escrever é troca, transformação, emancipação ... é um saber dolorido que marca, vicia e persiste  trazendo  à tona os mais ininteligíveis sentimentos que permite ao ser escritor que simplesmente seja.

"... Era um sonho muito bonito, todo acontecido em azul; tinha azul para qualquer gosto, do mais fraquinho ao mais forte. Eu estava lá mesmo, deitada na praia. E era de madrugada. Na minha frente tinha uma parede tapando o mar. Vi duas janelas na parede. Me levantei para ir olhar.
Numa estava escrito A TROCA; na outra, a TAREFA. Uma estava fechada; espiei pelo vidro fosco mas não enxerguei nada do outro lado. Bati no vidro, bati, bati com força. Mas só ouvi o barulho do mar.
Fui para outra janela. Também fechada. E o vidro também: não me deixando ver do outro lado. Bati.
- Que é?
Até me espantei de ouvir a voz perguntando.
- Abre - eu respondi - Eu quero ver do outro lado.
A janela continuou fechada. Mas a voz falou:
- Eu te livro desse amor, desse peso.
- O quê?
- Esse amor que você está sofrendo, essa vontade que você está sentindo de morrer: eu te livro disso.
- De que jeito?
- Quando a história estiver pronta você vai ver.
- História? que história?
A voz falou mais baixo:
- Escreve a história dessa dor e eu te livro dela. É uma troca: eu te prometo.
- O quê? Fala mais alto, eu quase que só escuto o mar.
- O mar. Lembra da poesia que você escreveu?
- Foi tão bom!
Aí a voz se confundiu com o barulho do mar. Eu acordei. A noite já ia virando dia; o céu era meio vermelho e a praia estava muito bonita. Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo: será que eu ia conseguir fazer uma história da dor que eu estava sentindo?
Voltei para o internato. Cada hora do recreio, cada domingo inteiro, cada hora-de-fazer-dever eu escrevia a história da minha vontade de morrer. E fui achando tão difícil de fazer, que, em vez de sentir vontade de morrer, eu só pensava como é que se fazia a história de uma vontade de morrer, em vez, de sentir a dor do amor, eu só sentia a força que eu fazia para contar a dor.
Então, quando um dia a história ficou pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o amor pelo Omar também: no lugar deles agora só tinha a história deles. Fiz que nem na poesia: transformei o Omar no mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei uma ilha pra botar nele: uma ilha para eu ir lá morar: de praia de areia fininha, onde o mar chegava a toda hora. E fui inventando uma porção de coisas pra acontecer na ilha. A história ficou tão grande. Acabou virando um livro. Foi o meu primeiro livro. Se chamou "Do outro lado da ilha" (...)
Os anos foram passando. E eu não parei mais de transformar: tinha me acostumado com aquilo. Levantava (levantava cedo), tomava café (com leite), escovava os dentes (já pensando o que que eu ia escrever), fechava a porta (não sei transformar de porta aberta) e começava: pegava a lembrança de uma maiga de infância que eu nunca mais tinha visto, imaginava a vida que ela tinha levado; virava ela num personagem principal; pegava o quarto de um hotel em que eu tinha ficado numa viagem e virava ele num capítulo; pegava a vontade que eu tinha tido aos 10 anos de ser astronauta e transformava ela numa viagem espacial em 200 páginas; pegava a saudade da minha mãe que tinha morrido (ela se chamava Violeta) e transformava a saudade num buquê que o herói do meu último livro ia dar para a namorada.
Fui me sentindo tão poderosa de poder transformar tudo assim!
Quando acabava um livro, mal descansava: já começava outro. Eu não queria mais descansar: eu só queria ficar assim: virando, escrevendo: aqui: na minha mesa de trabalho. Cada ano que passava eu ficava mais e mais horas aqui ..."

In: A troca e a tarefa. Tchau. Lygia Bojunga

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Village Café - Inquietações²

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 "Ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, queria era salvar a minha, veja que coisa mais individualista elitista, capitalista, queria ser feliz, cara."
Caio Fernando Abreu