terça-feira, 31 de maio de 2011

Sobre Hilst, a Hilda

por Débora C. Silva
Venho de Tempos Antigos
 

Venho de tempos antigos. Nomes extensos:
Vaz Cardoso, Almeida Prado
Dubayelle Hilst... eventos.
Venho de tuas raízes, sopros de ti.
E amo-te lassa agora, sangue, vinho
Taças irreais corroídas de tempo.
Amo-te como se houvesse o mais e o  descaminho.

Como se pisássemos em avencas
E elas gritassem, vítimas de nós dois:
Intemporais, veementes.
Amo-te mínima como quem quer MAIS
Como quem tudo adivinha:
Lobo, lua, raposa e ancestrais.
Dize de mim: És minha. 

Hilda Hilst

Sobre poetas de águas doces

A Guilherme Giancarlo, um certo passarinho ....                                                                                                 Hoje conheci um poeta de águas doces, daqueles que cheiram a jasmins e falam a trovões. Não me lembro de nomes. Só sei que ele cheirava a jasmim. Disse coisas fúteis, maldisse efemeridades e bendisse ostentações. Nem sei por que o chamei de poeta ...

Sei que dele exalava aquele cheiro jasmínico que insultava a minha inteligência. Ora, como pode cheirar a jasmim se me é invisível a ternura dos seres eleitos?

O fato é que não consigo deslumbrar aquele cheiro. E disso tenho raiva porque me toma o meu próprio cheiro. 

Se ao menos fosse inteligível a mínima gratidão ... mas não, não o quer ser. É um gatuno de ares nostálgicos seguros, o que me incomoda de uma forma nada incólume, já que pode roubar a minha paz mesmo que instantaneamente.

No entanto, desejei ardentemente inspirar aquele cheiro até que não fosse mais um cheiro ... até que fosse o ar que respiro. Poeta estúpido que me faz epifânicamente ingênua.

sábado, 28 de maio de 2011

Village Café - Café com Pão



Trem de Ferro

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)

Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)

Manuel Bandeira



quinta-feira, 12 de maio de 2011

Sobre enevoar

Henri Matisse
Não sei como tudo acabou. Bobagem ... se ao menos soubesse como tudo começou dava-me por refeito.

O fato é que acabou. Acabou tão leve e distante como tudo começou. Engraçado como a convivência engessa a trivialidade das trocas. E o pior é que nem nos damos conta disto … mas ela sempre dizia que eu era um desapercebido nato. Talvez por isso ela se foi, em um desses meus atos de desaperceber. Talvez.

Poderia, agora, reclamar aos deuses inverossímeis o cheiro dela, o gosto da boca de café, o peso das pernas sobre as minhas ... mas, não, não é isso que me falta ...

O que me é exíguo até ao ato de respirar quando lembro do nosso equívoco - sim, fomos equívocos cúmplices - é a estampa dela dormindo que teima em não esfumaçar-se. Quando dormia, mudava de cor ... variava em nuances pardas enevoadas. Encolhia-se toda em si mesma, abraçando com a mão esquerda o travesseiro como quem agarra-se a última chance. Sempre de bruços, a mão direita espalmava a parede gélida suportando todo o peso do mundo e os pés dançavam melodias suaves com perspicácia de bailarina. A respiração contínua, tranquila fazia preces de agradecimento. A boca levemente cerrada, de forma a delinear as palavras que ela sempre quis me dizer e eu nunca pude escutar, contrastava com a inconformidade dos cabelos rijos mas que enterneciam-se ao desvendar dos meus dedos sobre os mesmos ... sinto falta, sobretudo, do calor acalentador das minhas esperanças que aquele corpo obtuso emanava sobre mim.

E este cigarro, e essa paisagem urbana deixam-me cada vez mais impassível sobre essa miserável imagem enevoada que obstina-se em queimar por dentro ...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Sobre ruminar

"Deus, eu faço parte do teu gado: esse que confinas em sonho e paixão, e às vezes em terrível liberdade. Sou, como todos, marcada neste flanco pelo susto da beleza, pelo terror da perda e pela funda chaga dessa arte em que pretendo segurar o mundo.
No fundo, Deus, eu faço parte da manada que corre para o impossível, vasto povo desencontrado a quem tanges, ignoras ou contornas com teu olhar absorto.
Deus, eu faço parte do teu gado estranhamente humano, marcado para correr amar morrer querendo colo, explicação, perdão e permanência."
 
Por Lya Luft, 2006