quinta-feira, 12 de maio de 2011

Sobre enevoar

Henri Matisse
Não sei como tudo acabou. Bobagem ... se ao menos soubesse como tudo começou dava-me por refeito.

O fato é que acabou. Acabou tão leve e distante como tudo começou. Engraçado como a convivência engessa a trivialidade das trocas. E o pior é que nem nos damos conta disto … mas ela sempre dizia que eu era um desapercebido nato. Talvez por isso ela se foi, em um desses meus atos de desaperceber. Talvez.

Poderia, agora, reclamar aos deuses inverossímeis o cheiro dela, o gosto da boca de café, o peso das pernas sobre as minhas ... mas, não, não é isso que me falta ...

O que me é exíguo até ao ato de respirar quando lembro do nosso equívoco - sim, fomos equívocos cúmplices - é a estampa dela dormindo que teima em não esfumaçar-se. Quando dormia, mudava de cor ... variava em nuances pardas enevoadas. Encolhia-se toda em si mesma, abraçando com a mão esquerda o travesseiro como quem agarra-se a última chance. Sempre de bruços, a mão direita espalmava a parede gélida suportando todo o peso do mundo e os pés dançavam melodias suaves com perspicácia de bailarina. A respiração contínua, tranquila fazia preces de agradecimento. A boca levemente cerrada, de forma a delinear as palavras que ela sempre quis me dizer e eu nunca pude escutar, contrastava com a inconformidade dos cabelos rijos mas que enterneciam-se ao desvendar dos meus dedos sobre os mesmos ... sinto falta, sobretudo, do calor acalentador das minhas esperanças que aquele corpo obtuso emanava sobre mim.

E este cigarro, e essa paisagem urbana deixam-me cada vez mais impassível sobre essa miserável imagem enevoada que obstina-se em queimar por dentro ...

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